quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022

Vítima

Quando fui ao Rio de Janeiro pela primeira vez, diga-se Niterói, minha primeira senção foi de incômodo. Além das causas-core, que são um assunto futuro, esse incômodo veio da famigerada percepção de injustiça no ar. O primeiro motorista de aplicativos com quem andamos (eu e a equipe) veio comentando sobre como as pessoas davam mole e eram assaltadas ou furtadas por culpa própria, uma vez que deixavam chave, carteira e celular nas mesas dos restaurantes. 

Oi??? 

O mais irritante é saber que esse discurso que defende ser  suficientemente absurdo colocar pertences na mesa enquanto se come é amplamente compartilhado Brasil a dentro. Na sociedade brasileira, você é duas vezes obrigado a ter bolsas, pastas e pochetes. A primeira porque, sim, infelizmente, se você não se cuidar, no Rio, em Sampa, em BH... Você será, sim, assaltado ou furtado. A segunda, porquanto, além de experenciar a violência, em uma dessas situações, você ainda vai  ouvir os famosos "mas você também foi...", "a culpa é sua, quem mandou..."

Gente, por favor, parem de culpar a vítima. Ninguém sai à rua gritando, "por favor, assalte-me, furte-me, leve o celular que ainda estou pagando e faça vários pix." A pessoa que deixou o celular na mesa pode estar faminta, pode estar tendo um dia ruim e, por isso, distraída. Pode ser só um distraído lindo exercitando o direito de existir. Mas ela não causou assalto ou furto nenhum. A violência é responsabilidade de quem a pratica, do Estado, mas não do indivíduo que só quer almoçar.

Por falar em almoço. Há uns anos, estava almoçando com vários professores em uma instituição onde lecionei. Era um sábado à tarde, todos havíamos começado a trabalhar lá pelas sete. Um desses docentes ainda era estudante de graduação, por falta de dinheiro, trabalhava e estudava. Trabalhava de manhã e à tarde. Estudava à noite. Passou outra semana puxada. Chegou à sua casa, cozinhou e limpou. Preparou  aulas até de madrugada. Morto, no caminho para o curso de sábado cedo, tentando segurar o ferro mais próximo no ônibus, dormiu em pé. Deixou o celular no bolso de trás da calça. 

Ao contar como "perdeu" o telefone, antes de tudo, culpou-se. Quando eu disse "vítima", desabou. Fazia Letras, mas não conhecia esta palavra. Feixe de luz. Era muito mais que um dispositivo móvel perdido. 

Por favor, parem de culpar a vítima.

Rotina

Quem é que, todo dia, não tem vontade de se mudar para o interior, largar o trabalho, dizer não ao patrão? Quem é que, todo dia, não quer ficar na cama? Quem não tem vontade de pegar o carro e ir à praia ilimitadamente? Quem não se questiona, todo dia, o que faz e como faz para fazer? Quem não se pergunta se dinheiro vale tanto tempo investido? Quem não se pergunta se os planos vão dar mesmo certo? Quem não se pergunta se não é o momento de mudar a vida? De assaltar um banco. De ligar para o grande amor e perguntar o que  fazer tantos desperdícios depois. Quem não pensa em gastar menos, comer mais, comer menos, gastar mais? Quem, hoje mesmo, já não quis ser outra versão de si mesmo morando em um lugar melhor? Ter mais qualidade de vida. Quis viver, mas não teve coragem. Quis ligar, mas não teve o número. Não teve crédito. Passou o dia na eterna covardia, na indomesticável dor de sobreviver ao hoje e esperar o amanhã.  Só uns 30 anos +. Quantos de energia? Quantos de verdade?





quarta-feira, 16 de fevereiro de 2022

Dilúvio

Dilúvio - este é o nome de uma das músicas  que fazem com que a minha playlist do spotify seja o  meu lugar favorito no mundo ultimamente. Falando em música, hoje estava andando de metrô e me questionando qual seria a minha favorita. Esta e outras perguntas do tipo são uma tradição nas aulas que medio e os/as estudantes, não raramente, ficam pensando por horas para achar uma resposta. Como o meu papel, pensando em uma perspectiva comunicativa e até pós-metodológica, é mais ouvir que falar, nunca voltei a pergunta à professora e, consequentemente, nunca vivenciei a dificuldade da resolução. Assim sendo, depois de anos na retaguarda, tocou esse som da Carol Conká e pensei que essa poderia ser a minha música favorita. No mesmo momento, questionei se seria, de fato, ou quais outros sons, filmes, livros, viagens, etc. seriam os “meus melhores”. Difícil.  

Depois de muito autoquestionamento, lembrei que já preenchi muito perfil de rede social dizendo que a melhor música do mundo seria "Hey Jude", do Beatles. Mais ainda, comprei uma edição limitada e caríssima da Rolling Stones, com as 500 músicas mais estouradas de todos os tempos, somente para ler a respeito desse  tão amado hit. De fato, considero a música boa, mas a verdade é que, há anos, não a escuto mais.    

Por outro lado, esse pedaço de memória também me fez pensar em um tempo passado, quando essa canção dialogava com a minha própria vida. Na minha ótica, ela falava sobre motivação. Nas minhas pesquisas, sobre uma pessoa tentando motivar alguém cujos pais estavam se divorciando. Em outros termos, naquele momento, a música tinha sido feita para mim. 

Passa o tempo, vem outras situações e outras músicas favoritas dialogavam com os momentos. Acabei concluindo que a pergunta não deveria ser qual é a sua música favorita da vida, mas qual é o momento da vida que faz esta música ser a favorita? Obviamente, seria uma pergunta mais profunda e, talvez, por isso, não praticada.

Apesar de Dilúvio estar na minha lista há meses e eu sempre tê-la amado, somente hoje me veio esse pensamento orgasmático de que esta seria a melhor música de todos os tempos. Por acaso, pouco antes de ouvi-la, descobri que tenho diabetes e que, se quiser continuar existindo, a minha vida terá que mudar radicalmente. Peguei o metrô para ir me despedir do molho tarê e também de mim. Estou na capital de São Paulo desde novembro e nada me relaxa mais do que pegar a minha playlist, comer o metrô e ouvir um japonês. Agora as coisas irão mudar? Tenho medo. 

Sei que existem situações piores, mas desde sempre convivo com a diabetes e seus resultados práticos acometendo da visão à vida dos meus familiares. Uma dessas existências era de uma das minhas avós maternas, uma mulher forte com quem eu queria ter convivido. Também tem outros dilúvios me secando ultimamente. Este me inundou até o telhado. Entretanto, como ex - devota de  Beatles, estarei motivada. 




segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022

Paradoxos

Quatro textos em quatro dias - já posso pedir música no Fantástico. Alguém está superando as expectativas ou precisando se comunicar, reorganizar-se…


Introdução


Enquanto escrevo esta querela, escuto BaianaSystem e fico pensando se isso seria uma homenagem ou uma traição à Chico Science. Vocês precisam escutar esta banda, gente, sério.  Eu a conheci no último domingo, por meio de uma das melhores pessoas que me apresentaram nos últimos anos. Luciana. A Lu é a esposa do Renato, um dos meus melhores amigos da vida. Re e eu nos conhecemos desde 1997, por volta dos oito anos. A Lu, conheço desde 2017, mas com todo respeito ao meu best, Luciana foi amizade à primeira vista. Primeiro, porque ela me tratou muito bem desde o segundo em que nos conhecemos. Depois, porque ela me chamou para comer pizza. Terceiro, porque ela tem uma tatuagem perfeita no pulso e todo mundo que tem tatuagem (perfeita) nesta parte do corpo é bom sujeito ou boa sujeita. Como se não fosse suficiente, a Lu gosta de RAP. No último dimanche, Renato, eu e a Luciana fomos ao shopping ouvindo Racionais e voltamos escutando BaianaSystem. E é por aí que a nossa conversa começa. 


Paradoxos


Infelizmente, aqui em São Paulo, a violência faz parte da realidade do dia-a-dia. Muitas  vezes, a gente anda com o celular escondido ou deixa ele em casa. Sei que não faz sentido, mas, muita gente que não consegue pagar outro sem se matar age assim. Recentemente, soube de uma menina  que se salvou de ter o aparelho roubado porque escondeu ele na marmita (é sério). 


Tendo essas questões à vista, eu, que escuto Racionais desde os quinze e, desde os dezesseis, sou professora, não consigo enxergar essas situações de violência sem também sentir compaixão por quem as executa. Mais ainda, sinto culpa. Quando ouço, leio e vejo esse abandono social, sempre considero que aquela pessoa que está “cometendo um crime” poderia ser um estudante meu e deveria estar na escola, na faculdade e/ou no emprego dos sonhos. 


Recentemente, o Mano Brown disse alguma coisa desse tipo no podcast dele: “a gente precisa considerar que a conta não fecha no caso de muitas dessas crianças da Fundação Casa. O governo oferece abandono e quer cobrar muito deles”. Eu não lembro as palavras exatas, mas o sentido era esse. De outra parte, o convidado dele, que não vou nomear para não dar palco, disse que primeiro era preciso resolver a situação das pessoas que estavam trabalhando e sendo assaltadas. Obviamente, concordei com o Brown e discordei do fulano.


Mais para o fim do ano, estava reforçando o meu posicionamento enquanto lia o “Diário de um detento: o livro”, do Jocenir. Gente, esta obra causa um choque de realidade tão grande. Até para quem é das humanidades e já espera certas coisas, é pesado. Cada vez mais, percebia essas questões de uma forma sensível.  


Nesta altura da nossa conversa, cabe confessar o meu lado mau. Gente, eu julgo sem pena e tenho ódio dessas pessoas que falam que bandido bom é bandido morto, que é para colocar a rota na rua e coisas do tipo. Por esses aí, a minha compaixão é nula. Já desisti de respondê-los, mas se não odeio todos, porque alguns são parentes, odeio todos os seus discursos.  


Fechando o primeiro parênteses, em uma das noites que eu estava lendo o livro do Jocenir, meu pai chegou em casa, mostrou-me as mãos e disse: Vão-se os anéis, ficam-se os dedos. Meu pai é uma peça à parte. Em resumo, havia sido assaltado no portão da nossa casa. Levaram-lhe a aliança,  enfiaram-lhe a mão no bolso, pegaram-lhe a carteira e a jogaram no chão depois de revirar. Por acaso, isso era dia 24 de dezembro, diga-se véspera de natal. 


E agora, José? Agora, foi com seu pai. Vai ter compaixão? Vai se sentir responsável?


Aqui, vale o segundo parênteses. Consolei meu pai dizendo que, felizmente, não lhe levaram o celular, levaram “apenas a aliança”. Isso foi um milagre, porque o assaltante olhou apenas um dos bolsos dele e o celular, que, logo nesse dia, estava lá, o cara não viu. Mas como a aliança era antiga, já estaria desvalorizada rs. Obviamente, meu progenitor me corrigiu, docemente, explicando que a aliança aumenta de preço com o tempo e que levaram um anel de uns mil reais, da renovação dos votos de casamento. Até hoje ele está sem aliança…


Nos dias que se seguiram, muitas pessoas foram assaltadas da mesma forma. A moça que faz a minha unha, um rapaz no ponto de ônibus e outras várias pessoas. Só quem escapou foi a menina da marmita e uma outra que ia à padaria e levou bronca dos assaltantes, porque estava na rua sem celular e sem motivo. 


Nesse ínterim, fiquei muito apavorada em sair. Lembrei de quando fui assaltada e é uma sensação de quase morte -  não desejo para ninguém. 


Como era fim de ano e eu estava de férias das aulas e do doutorado, estava saindo sem parar para rever amigos como o Renato e a Luciana. Por algum tempo, parei de fazer essas coisas. Depois acabei voltando, mas sempre meio em pânico, porque nem queria pagar Uber e nem queria chegar cedo rs. 


Aconteceu que a polícia começou a aparecer. Eu a vi, no mínimo, umas cinco vezes pelo bairro. Em algumas delas, com umas motos enormes que, segundo o senhor meu pai “sobem até parede”. Adivinha quem passou a se sentir menos desesperada? 


Sim, paradoxos. 


Mas, agora já é fevereiro e olhando tudo de longe, vendo o desgoverno do país e o encarceramento em massa, recordo-me da frase que ouvi de uma palestrante de um centro espírita. Ela tinha tido o filho recém assaltado em Belo Horizonte e falou o seguinte sobre o assaltante: “a pessoa já está numa vida dessa, não sou eu que vou desejar mais mal”. 

É isso, gente - não sou eu que vou desejar mais mal. Não amo menos meu pai por isso, mas fiz minhas preces por estas pessoas. Que estejam bem e que saiam dessa vida, que tenham um governo melhor e, sobretudo, melhores oportunidades.


O meu papel é lutar direito, fazer como a Luciana: participar de organizações sem fins lucrativos, colocar a mão na massa e ainda ouvir bandas boas como a BaianaSystem. Compaixão sem ação, ficar lendo, como eu tenho feito, é bastante cômodo. 


Escutem BaianaSystem e escutem o Mano a Mano, podcast do Brown.









domingo, 13 de fevereiro de 2022

Contatos com as drogas

Meu primeiro contato com as drogas ocorreu quando eu tinha dez anos de idade.

No subúrbio de São Paulo, em uma madrugada de algum dia útil. Na altura, eu e a minha irmã dormíamos em um colchão improvisado no chão e lembro de ambas acordarmos assustadas com a campainha tocando. Ficamos quietas aguardando os nossos pais agirem. Em pouco tempo, a minha mãe voltou e levou a gente para dormir com eles. 


Naquele dia, uma mãe preta e solo, grande amiga da família, e a sua filha, trabalhadora assídua, iriam dormir com a gente. Há algumas ruas, o filho e irmão delas chegou em casa transtornado - havia usado drogas. Quebrou tudo, ameaçou-as… Com medo, elas fugiram correndo até a nossa casa.

Este foi o meu primeiro contato com as drogas.


Meu segundo contato com as drogas aconteceu uns 10 anos mais tarde.

Em uma zona nobre da cidade onde morava, em uma festa de bebida liberada. Eu e uma amiga estávamos conversando com dois caras que conhecemos por lá. Já estávamos bastante bêbadas. Em algum momento, eles foram buscar bebida. Ambos eram, aparentemente, estudantes sustentados pelos pais. Brancos, loiros, de olhos claros. Enquanto nos entregavam as bebidas, falavam entre si que um menino da festa “queria comprar doce”. Puxei a minha amiga pelo braço. Para eles, disse que iríamos ao banheiro. Para ela, disse que estavam vendendo drogas. Fomos embora.


São apenas contos, mas poderiam representar a realidade.


sexta-feira, 11 de fevereiro de 2022

Crise dos 30


Depois de uma vida inteira sem escrever por causas próprias, aqui estou. Redatora em pausa na carreira, cursando doutorado em Linguística, honestamente apavorada com a tela em branco. 


Na última vez que escrevi para mim e umas poucas pessoas, diga-se amigos, familiares e ex crushes, ainda não havia Google Docs e os meus  falecidos blogs ficavam em domínios hoje também inexistentes. A própria palavra “crush” foi incorporada à Língua Portuguesa depois dessa época. 

.

Coincidentemente, desta vez, estou escrevendo no Docs, refletindo se devo inserir ou não este e os possíveis futuros textos em um espaço aberto. A ideia, a princípio, é compartilhá-los com a minha primeira leitora. Aliás, esta retomada é também uma homenagem à melhor prima do universo - aquela que te pede para voltar ao ofício. 


De outra parte, é uma forma de materializar as divagações já escritas na minha cabeça, as quais por ordem da vida acadêmica, que também ordenou excelentes dores nos meus  joelhos, nunca saíram do plano das ideias - longas histórias.


Nas editoras, a assinatura dos textos e livros saem em nome das companhias - nada mais justo, afinal, existem propostas, revisões e contratos. No raso, assim me sinto muito mais confortável. 


Voltar a escrever publicamente aos  30 é um ato profundo de exposição e, segundo o meu psicólogo, sinto-me bem quando estou escondida. Apesar disso, o que menos tenho feito na vida é me esconder. Paradoxos. Aqui estou, redigindo as “palavras, atos e omissões” que, por mais de dez anos, têm me pixado internamente.